São Bernardo do Campo teve aumento de 31% de gestantes, em 2008; prefeitura diz que não há relação nos casos
Edicleide, 39, conheceu "Ceará", 48, em 2009, num forró. Ele, operário do trecho sul do Rodoanel. Ela, moradora do Jardim Represa, bairro de São Bernardo do Campo, vizinho à obra inaugurada em março de 2010.
Namoraram, juntaram, ela engravidou, ele ficou com outra (que também engravidou), brigaram, ele sumiu.
O filho foi registrado, mas nunca recebeu um centavo de pensão. O paradeiro de "Ceará" é desconhecido.
Hoje, ela vive em uma casa de dois cômodos com o auxílio do Bolsa Família -pago pelo governo federal- e a pensão de outras duas filhas.
A história de Edicleide Maria dos Santos é apenas um dos relatos de gravidez e abandono ouvidos pela Folha em seis bairros carentes da cidade, vizinhos às obras iniciadas em 2007.
Líderes comunitários, moradores, funcionários da prefeitura e conselheiros tutelares afirmam que "dezenas de mulheres" -muitas delas, adolescentes- engravidaram durante os três anos em que cerca de 4.000 operários permaneceram no local (em todo o trecho sul, foram 11 mil empregados diretos).
"Foram muitas crianças órfãs, porque o pai sumiu e retornou para seus familiares", diz Evaldo Carvalho, 43, líder comunitário do Parque Los Angeles.
Dizem que este é o verdadeiro pai dos "filhos do Rodoanel"
"PAI DE ONZE"
O município não tem o levantamento dos casos. Porém, em 2008, com os alojamentos já apinhados de operários, houve aumento de 31% no total de grávidas na cidade -e de 61% de gestantes com menos de 20 anos.
Em quatro das cinco unidades de saúde que atendem bairros do entorno da obra, houve aumentos de 40% a 82% -e de 73% a 91% no caso de gestantes adolescentes.
A prefeitura ressalta que, como houve aumento também em regiões distantes da obra, "não é possível concluir categoricamente que houve aumento significativo dessas ocorrências por causa dos relacionamentos fortuitos de operários do Rodoanel com as mulheres da região".
Nos cinco dias em que percorreu a região, a Folha conversou com seis mães, além de parentes e vizinhos de outras nove -total de 15 casos.
Um conselheiro tutelar que pede para não ser identificado confirma que foram "dezenas" -fora os casos que não chegaram ao conselho e os das maiores de idade.
No setor da conselheira Érica Santana, foram cinco adolescentes, entre 15 e 17 anos -além de denúncias de que um operário engravidou 11 meninas no bairro Areião.
Projetos sociais focaram os removidos
Segundo a Dersa, responsável pelas obras, pouco foi feito em relação ao impacto causado às famílias que ficaram na região
Gerente da estatal diz que os projetos serão ampliados durante a construção do trecho norte do Rodoanel
A Dersa, empresa do governo estadual responsável pelas obras do Rodoanel, admite que os projetos sociais do trecho sul foram voltados para as famílias removidas e que pouco foi feito em relação aos impactos causados às que ficaram na região.
Por isso, diz o gerente da Divisão de Gestão Social, Luciano Dias, a Dersa pretende ampliar os projetos sociais no trecho norte, cuja construção deve começar em dezembro. Ele questiona, porém, a relação direta entre a obra e a alta de gestantes.
Dias afirma que a licitação do novo trecho deverá incluir o compromisso das empreiteiras em trabalhar junto com a Dersa nas ações sociais, inclusive dentro dos canteiros das obras.
Ele diz que o crescimento de grávidas não foi cogitado porque não ocorreu no trecho oeste. "Já que teve uma situação, vamos ver o que a gente pode fazer contra isso em relação ao trecho norte para que não se repita".
Dario Rais Lopes, secretário de Transportes na época da contratação da obra, na gestão anterior do governador Geraldo Alckmin (PSDB), diz que não tinha como se prever esse impacto. Ele defende que essa preocupação seja incorporada.
Mauro Arce, secretário de Transportes durante a execução da obra, na gestão José Serra (PSDB), foi procurado, mas não deu entrevista.
A Secretaria de Estado da Saúde enfatiza que a responsabilidade pela orientação de planejamento familiar é dos municípios e que enviou recursos no período.
CADASTROS
Rodolfo Strufaldi, coordenador do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Prefeitura de São Bernardo, atribui a alta de gestantes à melhoria do cadastro da prefeitura, mas admite que a obra pode ter contribuído.
Segundo ele, a prefeitura reagiu rápido, com aumento de agentes comunitários (de 100 para 1.115 desde 2008), grupos de discussão nas UBSs e distribuição de preservativos aos operários.
Dos três consórcios que atuaram na região, o Queiroz Galvão/CR Almeida não respondeu aos questionamentos e se limitou a dizer que "se pautou pela execução responsável da obra e sempre cumpriu os requisitos estabelecidos em contrato".
Já o Odebrecht/Constran diz ter feito campanhas de prevenção, incluindo temas como DST, planejamento familiar e reuniões com a comunidade. O Andrade Gutierrez/Galvão Engenharia acrescentou ter abordado também prevenção contra drogas e alcoolismo.
Obras do Rodoanel deixam "órfãos" na região do ABC
Mães solteiras da região enfrentam o preconceito
Crianças são chamadas de "filhos do Rodoanel"; assunto atrai desconfiança e ironia
Na periferia de São Bernardo do Campo, o tema é tabu; moradores relatam aumento de brigas e prostituição
"Filha do Rodoanel!" -da janela da manicure de 35 anos dava para ouvir uma vizinha gritando, em referência à criança de um ano e nove meses que ela teve com um mestre de obras da via.
"Preconceito existe. Fazem piadinha falando que somos "mães do Rodoanel", mas tenho que focar na vida daqui pra frente", diz.
O tema é tabu no Parque Los Angeles, periferia de São Bernardo do Campo, onde mora a manicure. Falar sobre grávidas e Rodoanel ali geralmente resulta em silêncio, desconfiança, evasivas, negativas ou risadinhas.
"O povo não gosta de falar sobre a gente porque é coisa íntima, eles têm medo de que a gente ache ruim", diz a empregada doméstica Gizele Cerqueira, 30, que afirma não sofrer preconceito.
Ela sabe que o pai de sua filha, de dois anos e meio, é de Alagoas, mas ignora seu paradeiro. A criança não foi registrada e ele sumiu quando ela tinha 15 dias de vida.
A autônoma Alcione Amaro, 30, do Parque Los Angeles, teve mais sorte. Seu namorado da época, topógrafo mineiro, foi embora quando ela estava grávida de dois meses, deixando apenas um telefone. "Eu ligava todo dia, fiquei desesperada porque não conseguia contato."
Oito meses depois, já com o bebê nascido, ela conseguiu. Desde então, ele paga a pensão do menino.
Os moradores também falam da presença de meninas, de 12 a 17 anos, que iam para os alojamentos, de mochila e tudo, direto da aula.
FESTAS E PROSTITUIÇÃO
Outros impactos da obra apontados pela comunidade são: aumento de prostituição, consumo e tráfico de drogas, acidentes, brigas e isolamento de bairros. Jornais como o "São Bernardo Hoje" e o "Diário do Grande ABC" já haviam apontado os problemas, que, segundo eles,também atingiram Santo André e Mauá.
À epoca, moradores alugaram casas e chácaras aos trabalhadores. "Tinha muita menina de 15 anos no alojamento com 40 peões", conta a manicure Maria Cristiane Santos, 21, que engravidou de um operário do Piauí.
"Havia brigas e confusão, a gente nem dormia", lembra a dona de casa Cátia Cirilo, 36. Também havia mais bares abertos, que viviam cheios.
"Houve um momento de abundância econômica e, depois que esses homens voltaram para suas terras, deixaram as dívidas para trás", diz o vereador Paulo Dias (PT). O prefeito Luiz Marinho, do mesmo partido, não deu entrevista.
Marinei Marques, 51, foi uma das que não recebeu por algumas roupas que lavou.
Mas ela guarda cuidadosamente um bilhete deixado por um gaúcho que conheceu: "Mara, saiba que você foi minha gostosa."
Ela não engravidou, mas entrou em depressão quando o namorado foi embora e trocou o número do celular.
"Morro por causa daquele homem!", diz, entre gargalhadas.
Da Folha de São Paulo de 24/07/2010
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